Zona de Conforto

Tem alguns momentos em que eu me vejo pensando em assuntos dos mais diversos. Coisas do dia-a-dia mesmo, que observo em minha vida cotidiana, em certos comentários nas redes sociais, em programas de televisão (quando eu assisto, algo cada vez mais raro) e, como no caso desta postagem, em meu trabalho. Gosto de entender certas coisas relativas ao comportamento humano, embora eu nunca tenha tido o menor interesse em ser psicólogo ou coisa parecida. Talvez pelo fato de que certos comportamentos são bem curiosos e peculiares, apesar de não serem justificáveis ou coerentes, e nesses momentos fico divagando e tentando entender por que eles existem, sem nunca chegar a uma conclusão lógica. Mostra como nossa sociedade se prende a certos valores e conceitos, que são estabelecidos por poucos como verdade absoluta e incontestável, e todo mundo segue cegamente.

E o conceito que eu me refiro neste texto é a "zona de conforto", e como ela é sempre vista como algo negativo, como um "lugar" de onde todos nós devemos querer sair.

Sempre gosto de começar com a motivação de minhas postagens, o que me levou a escrever sobre o assunto. Como de costume, não entrarei em muitos detalhes da minha vida particular: podem me chamar de covarde, apenas prezo e muito pela minha privacidade, ainda mais no mundo digital. Mas posso dizer que comecei a refletir sobre o tema depois de uma palestra online da equipe de RH do lugar onde trabalho. Você sabe como é, com aqueles papinhos padronizados e imutáveis sobre relacionamento interpessoal na companhia, equilíbrio entre vida pessoal e profissional (uma balança que para muitos está desequilibrada com o home-office), ambições de carreira e todos aqueles argumentos de contra-capa de livro de Recursos Humanos. 

Nessa apresentação, um dos tópicos que foi mencionado, entre outros, foi justamente a tal "zona de conforto". E a tônica da conversa foi destacar como todos nós deveríamos estar atentos a isso, como se fosse algo ruim e profissionalmente indesejado, comentando que era papel do funcionário e de seu líder evitarem que se chegasse a essa condição, de cair em uma zona de conforto profissional. Caso isso acontecesse, era fundamental ter a ambição e motivação para sair dela, estabelecer novos desafios com metas e prazos, em como isso seria bom para o crescimento profissional do indivíduo, e blá blá blá.

Aí eu fiquei pensando... por que estar na zona de conforto é algo ruim e parece ser obrigatório querer sair dela?

Eu tenho a certeza absoluta que tal conceito é mais uma dessas narrativas que são idealizadas em um determinado momento por algum "guru" ou "especialista" que inventou essa percepção, e depois toda uma legião de seguidores começou a bater palminha e concordar. Mas mesmo assim eu fico me perguntando o que pode ter levado tais pessoas a essa conclusão, quais seriam as justificativas para classificar uma zona de conforto como algo negativo, que deva ser evitado. 

Afinal de contas, entendo que conforto seja uma coisa boa, certo?

Precisamos sempre começar com os conceitos. Assim, para mim a definição de "zona de conforto" seria estar em uma determinada condição, seja física ou abstrata, em que o individuo se encontra cômodo, com bem-estar. Em suma, uma situação que seja favorável a essa pessoa, que lhe proporcione segurança, estabilidade e alívio. Considerando que a palavra "conforto" está associada a algo positivo, entendo que seja uma condição natural do ser humano buscar uma situação de maior conforto. 

Por sua vez, buscar uma condição de desconforto me parece fora da naturalidade. Ninguém em sã consciência e por iniciativa própria vai desejar uma condição que seja mais desconfortável do que aquela em que se encontra. Não concorda? Afinal, quem é que quer desconforto?

Para justificar essa minha hipótese, proponho um exemplo. Vamos considerar um quarto de dormir. 

Claro que cada um tem o seu conceito de conforto quando o assunto é onde se dorme. Mas acredito que existem vários fatores que caracterizam um quarto que seria confortável para o sono. Por exemplo, com uma cama grande e macia, cobertas de qualidade, um bom ar condicionado (considerando um clima quente como temos na maior parte de nosso país), que seja espaçoso e silencioso, sem barulhos externos ou a interferência de luzes fortes passando pelas cortinas. 

Creio que há grandes chances que você considere esse um exemplo de quarto confortável, não é?

Pergunto então o seguinte: se você tem um quarto como esse em sua casa, faz algum sentido mudar para outro que seja pequeno, com uma daquelas camas de solteiro com colchão duro, que sequer tenha um ventilador de teto, que cheire mal e fique em uma região barulhenta?

A não ser que você seja um masoquista, provavelmente a sua resposta será "não", sem ter que pensar muito.

Por essa razão eu digo que uma pessoa não vai sair de uma condição confortável para outra desconfortável, por livre e espontânea vontade. Ou seja, não é natural que alguém deseje sair de sua zona de conforto. A única possibilidade plausível na minha opinião é quando isso ocorre contra a vontade do indivíduo. Por exemplo, suponha que você tenha que ficar naquele quarto desconfortável em uma viagem, pois é o único hotel que tem na cidade (já passei por isso). Aí é razoável que você tenha que sair da sua zona de conforto, sendo obrigado a abrir mão do quarto confortável de sua casa para dormir em um desconfortável de um hotel por estar em viagem a trabalho, por exemplo.

Logicamente que eu estou usando um exemplo que depende, de certa forma, somente da percepção da pessoa, e que também é relativamente mundano e sem muita criticidade. Se consideramos o contexto corporativo que motivou a minha postagem, é válido reconhecer que existam duas partes que possuem suas percepções específicas sobre o que seria uma situação confortável, e precisam chegar em comum acordo. Nesse caso, o conceito de conforto pode ser bem amplo, e depende muitas vezes do tipo de atividade profissional.

Para o funcionário, o conforto pode ser uma situação onde tenha um bom salário, horários adequados, uma atividade que o realize de forma profissional. Seria, por exemplo, fazer aquilo que gosta, em um ambiente que seja agradável e onde se sinta à vontade, ganhando o suficiente para manter sua vida e com uma carga horária que não prejudique sua saúde e vida pessoal. 

Para a empresa, talvez a palavra conforto possa não parecer como a mais adequada, mas entendo que se aplica. Será uma situação confortável para a companhia que o funcionário acima tenha, por exemplo, um bom rendimento em sua função, que cumpra os prazos definidos e que colabore com os resultados. Inclui também outros fatores mais gerais como, por exemplo, que o colaborador seja organizado, respeite as regras da empresa e tenha um relacionamento adequado com os demais colegas. 

Considerando isso, temos então duas percepções de conforto quando falamos de uma situação corporativa. E me parece bem evidente que, para a empresa, a parte do funcionário é aquela a qual se referem quando falam de sair da zona de conforto. Afinal de contas, o RH de uma empresa não vai propor nada que seja prejudicial para a mesma. Nunca um departamento vai sugerir uma mudança em que se saia de uma condição confortável para a empresa para outra que seja desfavorável, certo?

Então, quando uma RHzete fala que é necessário sair da "zona de conforto", o alvo quase sempre é o funcionário. 

Agora, me pergunto por que o ato de sair de sua zona de conforto é considerado incondicionalmente correto nessas situações. Na verdade, até mesmo quando nos referimos a questões fora da vida profissional, é como se fosse um dever. A zona de conforto é definida como uma condição estagnada, em que a pessoa se acomoda em um estado em que tudo é familiar e transmite segurança, e dessa forma não alcançará o sucesso e o crescimento pessoal. É praticamente um consenso na opinião de especialistas do ramo que todos nós temos que sair de nossa zona de conforto. 

Basta uma rápida pesquisa na internet e você verá várias páginas e vídeos falando das vantagens disso, dando dicas de como sair dela, os malefícios de se ficar nessa zona, os benefícios libertadores quando se deixa essa zona limitada, entre outras coisas. Sem falar das frases de efeito, como "a vida começa onde termina a sua zona de conforto", todas elas motivando as pessoas a saírem de uma condição confortável em que se encontram. Por exemplo, veja essa definição que vi neste site, que reproduzo aqui.

"A zona de conforto refere-se a uma série de pensamentos e comportamentos que não provocam nenhum tipo de medo, ansiedade ou risco. Uma pessoa que está na zona de conforto realiza apenas as coisas que lhe trazem resultados satisfatórios, limitando-se à uma falsa sensação de segurança que impede a superação e a evolução.

Por um tempo, essa zona produz uma sensação positiva. No entanto, ela nos impede de aprender coisas novas e de progredir em nossas vidas pessoais e profissionais. É como se o aluno que concluiu o 6º ano não quisesse ir para o 7º. Ele já aprendeu tudo o que tinha para aprender, mas agora precisa lançar-se a novos desafios, caso contrário, jamais conseguirá concluir seus estudos.

Com o passar do tempo, a tendência é que esta zona se torne tão familiar que o indivíduo não consegue perceber que está inerte. A preguiça, a soberba, o medo e a cegueira são alguns dos principais motivos que empurram a pessoa para a zona de conforto."

Bem diferente da minha singela definição lá de cima. E aposto que muita gente deve considerar como certa esta definição do site que reproduzi. Afinal de contas, veio de uma página de coaching e foi escrita por alguém que trabalha há anos em desenvolvimento humano, enquanto que eu sou um mero texugo insignificante, que tem um blog tosco sobre temas aleatórios e propôs uma definição mais literal da expressão. 

Se essa é a sua percepção, não vou ficar chateado se você for embora (caso já não tenha ido). Afinal de contas, eu sei que cada vez mais hoje em dia valoriza-se o "argumento de autoridade", em que o título do indivíduo parece ser condição suficiente para que suas palavras sejam consideradas como verdades absolutas e inquestionáveis. Nesses casos, não importa se o que eu diga faça ou não sentido, vou sempre ter menos credibilidade do que alguém que trabalha com coaching. Vivemos hoje em uma época onde muitas vezes vai ter alguém dando uma "carteirada" e usando uma autoridade, baseada apenas em um título ou tempo de experiência, que anule toda e qualquer forma de diálogo e discussão adulta.

Porém, se você continua aqui, tentarei expor meu ponto de vista e propor uma reflexão sobre o tema.

Na minha opinião, a definição acima me parece limitada. Em outras palavras, entendo que seja referente a uma condição particular de zona de conforto. E que sim, pode ser negativa. Claro que existem situações onde o indivíduo opta pelo caminho mais fácil e se acomode em uma zona de conforto por diversas razões, como preguiça ou soberba; mas não se trata da regra na minha percepção. A zona de conforto não é necessariamente uma coisa ruim (como no exemplo do quarto acima), e além disso entendo que certas situações que são tidas como o ato de "sair da zona de conforto" sequer se aplicam a este conceito.

Como no exemplo do texto, do aluno que terminou a 6ª série, e assim precisa sair dessa "zona de conforto" e partir para seguinte, onde terá mais desafios pela frente. Tudo bem, faz sentido que ele vai enfrentar maiores desafios na 7ª série, e isso poderia indicar algo como sair de uma situação confortável. Mas, pessoalmente, não vejo o ato de subir de série tanto como sair da zona de conforto necessariamente. Trata-se de uma evolução programada do ciclo escolar daquele aluno, um caminho que já está mapeado enquanto ele segue na escola. Na verdade, ele sequer teria a opção de permanecer na zona de conforto da 6ª série, já que a sua "carreira" acadêmica obrigatoriamente o levaria para a 7ª série. E depois para a 8ª. E depois para o 1º ano do 2º grau e assim por diante.

Antes que falem alguma coisa, quando eu estudei ainda era assim: tinha o 1º grau que ia até a 8ª série, e depois vinham as três séries do 2º grau. Sei que hoje é diferente.

Não faz sentido para mim considerar a progressão acadêmica como "sair da zona de conforto". Se fosse assim, então depois que o sujeito se formar na faculdade, ele teria que sair de sua zona de conforto e fazer um mestrado. E depois fazer um doutorado. E em seguida um pós-doutorado. E sei lá que mais ele poderia fazer, um pós-pós-doutorado. Mas não é assim que acontece: cada um terá a sua suposta zona de conforto acadêmica, que seja suficiente para a pessoa de forma individual devido a diversos motivos particulares. Alguns estarão confortáveis com o diploma de bacharel; outros só estarão confortáveis quando ganharem o título de mestre; e outros quando chegarem ao nível de doutores. 

Será que só porque o cara se sentiu satisfeito com um diploma de graduação, ele deve ser considerado como um acomodado ou preguiçoso? Todo mundo deve ter a ambição de ostentar o título de doutor? Se formar na faculdade e não fazer um mestrado é definhar em uma zona de conforto?

Enfim... voltando à questão, é possível perceber como a turma de RH cria essa percepção limitada de que zona de conforto é algo ruim. Pois ela é tipicamente associada a quatro traços de personalidade considerados negativos: a preguiça, a soberba, o medo e a cegueira. Ou seja, a pessoa que está na zona de conforto é alguém que busca o caminho mais fácil e prefere a lei de menor esforço, ou se acha o maioral e que é perfeito em tudo que faz, ou é tomada por receio do desconhecido em relação ao que pode acontecer ou pensarem dela, ou então que seja incapaz de perceber que existe algo além daquela zona confortável em que se encontra. Quem está na zona de conforto é um acomodado, um convencido, um covarde e um conformista. E quem quer ser isso tudo?

Logicamente que, colocando tais características em ênfase, se cria uma visão negativa sobre a zona de conforto, que passa a ser vista como um empecilho à evolução e ao crescimento pessoal e/ou profissional. É como se só fosse possível chegar ao sucesso saindo dessa zona. Mas repito, vejo essa como uma visão muito generalizada, que promove a ideia de que precisamos estar sempre desconfortáveis com a situação atual em que nos encontramos e sempre buscar mudanças. Não faz o menor sentido pra mim.

Primeiro, pelo fato de que entendo que o conceito de "zona de conforto" não se trata de algo universal e global de uma pessoa, que domina todos os aspectos de sua vida. Cada um pode ter diversas zonas, e em cada uma delas se encontrar em diferentes condições, de conforto ou desconforto. Por exemplo, considerando a vida pessoal e profissional, é possível que o sujeito esteja em uma situação relativamente confortável em casa mas desconfortável no trabalho. Tipo, o cara que tem esposa e filhos, todos com saúde, vivendo em uma casa e com as contas em dia, mas no escritório ele se sente incomodado, fazendo algo que não o realiza profissionalmente. Estaria, portanto, em uma zona de conforto somente em sua vida pessoal. A ambição de mudar, de buscar algo novo, se aplicaria apenas na vida profissional.

Ou será que para os coaches mesmo uma zona de conforto na vida pessoal é algo negativo? Será que o indivíduo desse exemplo acima deve ter a ambição de arrumar uma casa maior? Ou a coragem de ter mais filhos? Ou achar que sua vida sexual não é perfeita e arrumar uma amante?

Brincadeiras à parte, penso que cada pessoa possui diversos aspectos em sua vida, na verdade vai além de uma mera bipolaridade entre vida pessoal e profissional. Por exemplo, vida pessoal pode se dividir em diversas parcelas, como questões relativas à saúde, à relações familiares e afetivas, com os amigos, lazer e etc. É a definição do termo "zona", uma região delimitada por algum critério. E sua fronteira pode ser mais focada em determinados aspectos do indivíduo e não somente nele de forma global. Da mesma forma que podemos delimitar sua residência em bairro, cidade, município, estado, país, continente e assim por diante. Assim, não faz sentido assumir que zona de conforto seja uma coisa geral que englobe todos os aspectos da vida desse indivíduo. 

Em segundo lugar, eu penso em como esse tipo de percepção negativa da zona de conforto possa resultar em outros problemas psicológicos na pessoa, que na minha opinião podem ser até piores. Por exemplo, ao tornar a zona de conforto como algo negativo, da qual temos que sempre querer sair, há um grande risco de que se desenvolva um senso de desconforto constante. Pois a outra "zona", em que se deseja chegar quando estamos em uma primeira zona de conforto, em um determinado momento se tornará uma nova zona de conforto, e aí uma vez mais se buscará uma mudança. E assim sucessivamente, "pulando" de zona em zona.

Fico até pensando que pode acontecer que em um determinado momento, após vários ciclos de saída de zonas de conforto, se chegará a uma condição em que a pessoa já se encontrava antes, da qual ela já tinha saído. Tipo, seria como a pessoa que mora em Ipanema e que não queira se acomodar no bairro onde mora. Aí decide mudar para Botafogo. Mas aí não quer se acomodar em Botafogo, e decide mudar para o Catete. Depois, querendo sair da zona de conforto no Catete, vai acabar mudando para Ipanema, de onde ele tinha saído pois estava supostamente desconfortável com a ideia de morar ali.

E digo que já vi isso na minha vida profissional. Como um colega que estava em um cargo, na sua zona de conforto, e foi incentivado a mudar.  Alguns anos mais tarde, depois de passar por várias áreas da empresa, voltou para o cargo onde estava. Para mim, isso não faz o menor sentido, mesmo que se tente falar da experiência adquirida com as mudanças, tal profissional não deveria voltar para um cargo que em um determinado momento foi considerado como uma zona de conforto, que estava impedindo seu sucesso e desenvolvimento. Pra mim, é como voltar à estaca zero.   

Além disso, tudo na vida tem seus limites. Embora muitas dessas recomendações de coaching indiquem a importância de saber seus limites, muitas vezes eles não são tão perceptíveis assim, ou mesmo fogem de nosso controle. Ao sugerir que a pessoa deva sempre buscar uma saída da zona de conforto, tem-se alguém que estará sempre incomodado, sempre querendo mudar da sua situação atual para algo supostamente melhor. Em um determinado momento isso não será mais possível, dando lugar à frustração: a pessoa já assimilou a ambição pela mudança em sua vida, mas agora ela não tem condições para isso. Será assim obrigada a aceitar a condição em que se encontra, e isso pode não ser fácil para alguém que se acostumou a viver num estado de constante "desconforto" e mudança.

É um assunto bem interessante... Repito, não sou psicólogo nem coach, nunca estudei nada a respeito disso, e tampouco estou me posicionando como detentor da verdade. Mas sempre acreditei que na vida não podemos generalizar, ainda mais quando falamos de certos aspectos da personalidade. Cada pessoa é única, e promover a ideia de que seja errado se acomodar em uma zona de conforto, que isso seja uma coisa negativa não importa a situação, eu pessoalmente acho incoerente. Cada um tem a sua vida, a sua percepção, suas preferências e desejos, e classificar uma zona de conforto como algo positivo ou negativo depende de todas essas características particulares de cada um.

A postagem está ficando longa, como de costume... Mas antes de encerrar eu preciso voltar à temática que originou toda esta discussão, que é a visão negativa que há no mundo corporativo sobre a zona de conforto. Como disse acima, em se tratando do conceito de "conforto" do profissional de uma empresa, existem duas percepções distintas, uma do colaborador e outra da corporação. E vimos também que nas situações em que se fala a respeito da acomodação do funcionário em uma zona de conforto, isso ocorrerá na grande maioria das vezes por conta de um desconforto por parte da empresa.

Podem achar que estou falando bobagem. Mas o departamento de RH existe para se preocupar com os interesses da empresa. Os interesses do funcionário só são importantes quando estes convergem com os da companhia. 

Assim, quando temos uma situação dessas em que alguém de Recursos Humanos te chama e sugere que você deva pensar em sair da zona de conforto, é porque existe algum interesse da empresa em que você mude alguma coisa. Se isso será de seu agrado ou não, se vai enriquecer a sua vida profissional, isso será sempre secundário. Embora o discurso seja sempre feito de forma a dar a impressão que tal sugestão é "para seu próprio bem". Aí entram as frases de efeito, que é interessante ter uma ambição profissional, fazer coisas novas, mudar de ares e etc, tudo para convencê-lo de que se trata de uma grande ideia. 

Ainda vou fazer uma postagem sobre essas frases corporativas, que eu acho ridículas. Como "pensar fora da caixa" ou "fazer mais com menos".

Não me levem a mal, não estou dizendo que o pessoal de RH não preste. Mas é fato que sua motivação é buscar o melhor para a empresa. Pode até ser que tenha sido percebido algum potencial no funcionário, algo que possa ser desenvolvido para formar uma competência que será útil para ambas as partes, que de fato traga também um benefício para a pessoa. Meu ponto é que este não é o objetivo primário, não é o agente motivador para que se sugira que alguém saia de uma condição em que se encontre confortável. Se a empresa não vislumbrar um benefício e/ou necessidade em que você saia da zona de conforto, ela não vai te sugerir isso.

Tipo, imagine que você fale inglês fluente, e sua empresa lida também com o mercado da América Latina. É bem provável que vão sugerir em algum momento que você deva sair de sua zona de conforto e fazer um curso de espanhol, que é muito bom aprender um novo idioma, que faz parte do desenvolvimento pessoal e etc. Mas se a empresa trabalha apenas no mercado nacional, o mesmo RH não estará preocupado em sugerir este mesmo tipo de iniciativa. Aí não tem problema em ficar numa zona de conforto em que se fale somente português e inglês.

Claro... ainda existe a possibilidade de que exista algum interesse escuso por trás... Tipo, em que se proponha que o funcionário saia da zona de conforto e faça algo diferente, com o objetivo de deixá-lo em uma situação desconfortável para talvez se demitir. Já vi casos em que o RH usa esse papo de sair da zona de conforto e ter ambição por novos desafios para jogar o colaborador em um cargo ruim ou mesmo em uma outra localidade, para que ele se sinta incomodado e peça pra sair. Aconteceu com um conhecido meu, que não queria mudar de cidade por conta do emprego de sua esposa. A empresa então o mandou lá pro Nordeste, e depois de dois meses ele desistiu do emprego. Pode ser algo raro, mas acontece.

A grande questão é que ao priorizar somente o interesse da empresa, corre-se o risco de gerar um problema. Como disse acima, a zona de conforto não é algo universal, e ao mesmo tempo que a companhia possa estar desconfortável com determinada situação, o funcionário pode estar de boa. Ou, pior ainda, por conta de uma miopia corporativa, motivada justamente por essa visão generalizada que sair da zona de conforto sempre é algo positivo, pode ocorrer alguma situação onde o funcionário está em uma determinada atividade, em sua zona de conforto particular, e que também seja benéfica para a empresa. Ou seja, uma condição positiva para ambas as partes, mas que mesmo assim motiva uma mudança por conta da mudança em si, ou por priorizar uma necessidade em detrimento de outra. 

O pior de tudo é que isso vem com o risco de que a mudança coloque uma das partes (ou até ambas) em uma posição desconfortável sem necessidade, e que depois acarretará em consequências negativas para uma delas ou para as duas. Tudo porque se acreditou incondicionalmente que deve-se sair da zona de conforto sempre, que mudanças são sempre boas... Repito, acho isso incoerente, tem horas que a manutenção de uma zona de conforto é benéfica e não tem o menor problema.

Pode parecer confuso, mas explicarei isso com um outro exemplo. Prometo que será o último, e que já vamos caminhar para o término do post depois dele.

Vamos imaginar um jogador de futebol de um determinado time, que jogue no ataque. Como mencionei acima, o conceito de condição confortável para cada uma das partes é distinta, e para este exemplo farei algo bem simples: do ponto de vista do jogador, seria simplesmente o fato dele gostar ou não de jogar no ataque. Da parte do time, estaria associado ao seu desempenho na posição, tipo, se ele faz muitos gols e contribui para as vitórias. Seriam assim quatro combinações possíveis, e vamos supor que um belo dia a comissão técnica vai chamar esse jogador para uma conversa, usando o papo da zona de conforto e sugerindo que ele deveria mudar de posição e jogar na zaga.

Bom, como disse acima, a motivação desta conversa é sempre da corporação, que no exemplo seria o time. Neste caso, indicaria que a equipe precisa de um zagueiro. Essa é a necessidade que motivará a conversa, e vamos imagina que isso não esteja sendo feito de má fé, com a intenção oculta de forçar o jogador a ir embora.

Consideramos a condição em que ambas as partes estão em uma zona de desconforto. Ou seja, o cara não gosta de jogar como atacante e possui um desempenho ruim. Claro, diria até que numa situação dessas ele provavelmente já teria sido mandando embora. Mas, supondo que exista o interesse em mantê-lo no time ainda, tal conversa não poderia ser na linha de sair da zona de conforto. Pois não há zona de conforto para nenhuma das partes. Pode até ser que o jogador não tinha noção dessa possibilidade de jogar como zagueiro, ou mesmo o time não tinha pensado em usá-lo nessa posição. Mas, independente das razões, não cabe neste caso afirmar que a pessoa estaria saindo de sua zona de conforto, na verdade faz mais sentido que se trata de uma busca por uma zona de conforto para o jogador e/ou para o time.

Vamos pensar agora um cenário em que só o time esteja na condição de conforto. Quer dizer que o cara até é bom no ataque e marca muitos gols, mas ele não curte jogar em tal posição. Seria uma situação em que a sugestão de mudar de posição seria plausível em um certo ponto: tudo bem que em um primeiro momento o time estaria perdendo um bom atacante, mas talvez já tenha atacantes suficientes e seja mais importante um zagueiro. Assim, talvez em uma outra posição o jogador fique mais satisfeito e tenha também um resultado bom. Mas, novamente digo que não seria de todo correto dizer que a comissão técnica esteja sugerindo que o jogador saia de uma condição de conforto, pois ele não se sente em uma zona de conforto (ele não gosta de jogar no ataque). Talvez seja para o time, mas certamente para o atleta não é.

Considere agora que somente o jogador esteja em uma zona de conforto. Seria assumir que ele gosta de jogar como atacante mas possui um rendimento ruim que não colabora com o time. Nesta situação eu entendo que seria uma tentativa de sair da zona de conforto, e que se mostra justificável. É realmente o caso do jogador que está acomodado na posição de atacante, que talvez nem perceba que é ruim, que tem preguiça de mudar. Todos os conceitos da definição de zona de conforto dos "entendidos" se aplicam. Aí vale a pena sugerir tal mudança, pois talvez na zaga ele tenha um rendimento melhor, talvez até mesmo a comissão técnica perceba que ele tem potencial para jogar como zagueiro. Neste cenário faz sentido sair da zona de conforto, há boas chances de ser algo positivo.

Mas, imagine agora a situação onde ambas as partes estejam na zona de conforto. Ou seja, o sujeito gosta de jogar no ataque e o faz bem, é goleador e ajuda o time a vencer. Seja sincero, faz sentido usar o papo de "sair da zona de conforto" nessa situação? Mesmo que a equipe esteja precisando de um zagueiro, propor isso para o atacante que tem bom desempenho não faz sentido, mesmo que ele tenha potencial para atuar na defesa também. Estaria tudo perfeito na concepção de que sair da zona de conforto é o ideal, mas além de perder a contribuição no ataque deste jogador, as chances são grandes que ele se sentirá descontente jogando na zaga. E aí o time corre o risco de que ele fique insatisfeito e vá para outra equipe, onde poderá atuar em uma posição que se sente confortável, e que além disso tem qualidade...

Aí pergunto novamente, inclusive na esperança de que um coach ou alguém da área de desenvolvimento humano possa responder: nessa situação, valeria a pena incentivar a saída da zona de conforto?

Digo mais uma vez, caso não tenha ficado claro: logicamente que há situações onde um pouco mais de ambição e desejo por mudanças seja recomendável. Em determinadas situações a zona de conforto na qual nos encontramos não é benéfica na prática, ou mesmo não é o melhor que podemos alcançar. Há momentos em que precisamos arriscar, sentir aquele "frio na barriga" pode ser útil para o crescimento individual, trazendo bons frutos. Não questiono a importância disso em determinados momentos.

Mas não podemos ser cegos a ponto de viver em uma zona de desconforto constante, de achar que sempre devemos mudar e buscar algo diferente. Todo o sistema tende a chegar numa condição de equilíbrio em algum momento, e o mesmo vale para nossas vidas. Faz parte do crescimento pessoal também saber como avaliar os riscos e reconhecer os momentos em que o mais indicado é ser conservador e manter a condição atual. Não podemos viver em um estado constante de ambição, de sempre achar que as mudanças serão positivas, pois uma hora as consequências podem ser muito ruins, trazendo prejuízos que não compensam um aprendizado que poderia ser obtido de outra forma em outro momento. 

Especialistas podem jorrar mil e um motivos que justifiquem que sair da zona de conforto é sempre uma ótima ideia, que o sucesso e uma vida feliz e plena só serão alcançados se você pisar fora do "quadrado" onde se sente confortável. Mas se esquecem de enfatizar que ficar em uma zona de conforto durante certos momentos é algo muito benéfico. Pois é aquele lugar que transmite segurança e te dá a oportunidade para recuperar as energias e colocar os pensamentos no lugar. Inclusive, quando saímos de uma zona de conforto e entramos em outra "zona", que se tornará uma nova zona de conforto (vide o exemplo da mudança), não há nada demais em curtir um pouco essa conquista. Por fim, o ser humano precisa da familiaridade, da segurança e do conforto para viver em harmonia, aspectos fundamentais para ter uma boa base antes de almejar novos desafios. Em outras palavras, é necessário estar em uma zona de conforto para querer sair dela, e devemos saber aproveitar o que ela nos oferece de bom, pelo tempo que julgamos necessário, não importa o quão duradouro seja.  

Além disso, torno a dizer que a zona de conforto não pode ser vista como uma condição geral do ser humano, válida para todos os aspectos de sua vida de forma homogênea. Temos que lidar com diferentes aspectos, como o trabalho, a família, os amigos, relações afetivas, saúde, lazer e tantos mais, alguns em que podemos estar em uma condição mais confortável e outros onde temos dificuldades. Nessas horas, para lidar com as zonas de desconforto que precisamos resolver, é fundamental que tenhamos "portos seguros" em tudo esteja bem, de forma controlada e que proporcione uma segurança que dará força para enfrentar os demais desafios. Podemos ter zonas de conforto e de desconforto para diferentes aspectos, e isso é normal.

Por fim, sempre lembrando que cada um deve ser soberano para avaliar se está ou não em uma zona de conforto, e se ela é benéfica ou prejudicial para si. Isso é o mais importante. Se alguém sugere que você deva sair da zona de conforto, muito provavelmente é porque ela deseja que você mude para uma condição que seja mais para esse alguém. Digo novamente, cada indivíduo é único, o que é bom para um pode não ser para outro. Na minha opinião, crescimento pessoal não é abraçar incondicionalmente a ideia que ele só ocorre fora da zona de conforto; é saber identificar se uma determinada zona é confortável ou não para você, e se será melhor para sua vida continuar nela ou não, seja de forma definitiva ou temporária.

Comentários

sammy disse…
Caramba, que artigo perfeito. Só consigo aplaudir. E ele se encaixou perfeitamente com uma situação que aconteceu comigo ontem.

Minha mãe estava falando sobre como eu deveria tirar a minha CNH e eu disse que não me sentia à vontade em dirigir um carro, que não me sentia responsável o suficiente e que eu tinha medo de sofrer algum acidente, e ela respondeu de volta pra que eu saísse da zona de conforto.

Acho que vai de cada pessoa, e zona de conforto não deveria ser vista de forma demonizada. Fico feliz que tenha escrito isso.